sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A Fontana di Trevi em La Dolce Vita e em Elsa & Fred: uma breve análise intertextual com base em Bazerman ([2004] 2021)

Para iniciar este texto e a análise proposta, considera-se a reflexão e metáfora de Bazerman (2021, p. 136) para se referir à intertextualidade ao dizer que “nós criamos os nossos textos a partir do oceano de textos anteriores que estão à nossa volta e do oceano de linguagem em que vivemos. E compreendemos os textos dos outros dentro desse mesmo oceano.”

Mais especificamente sobre o foco desta análise a partir dos estudos da linguagem,  a intertextualidade é a relação que cada texto estabelece com os outros textos à sua volta, como chama Bazerman (2021) ou, ainda, “as relações explícitas e implícitas que um texto ou um enunciado estabelecem  com os textos que lhe são antecedentes, contemporâneos ou futuros (em potencial).” (IDEM, 2021, p. 142).

A seguir, segue um esquema baseado no texto de Bazerman (2021) como representação da ideia proposta pelo pesquisador em seu escrito sobre as relações evocadas pelo texto:


Partindo da consideração do esquema acima, percebe-se quais aspectos são considerados além do cotexto limitado, visto que, como o próprio autor em questão afirmou: a análise intertextual investiga não somente a relação de um enunciado com aquele oceano de palavras – metáfora referida inicialmente –, mas também o modo como tal enunciado usa essas palavras e ainda a maneira como ele se posiciona em relação às outras palavras (IDEM, 2021). 

O texto, suas relações possíveis com outros textos e sua infinitude de construção de sentido conduzem a uma leitura ilimitada, a qual identifica múltiplas e infindas referências. E, diante disso, Bazerman (2021) propôs alguns aspectos de análise a serem considerados no texto, descritos como níveis de intertextualidade, dispostos a seguir.


NÍVEIS DE INTERTEXTUALIDADE (BAZERMAN, 2021)

1 - O texto pode remeter a textos anteriores como uma fonte de sentidos, usada como valor nominal.

2 - O texto pode remeter a dramas sociais explícitos de textos anteriores mencionados na discussão.

3 - O texto também pode explicitamente usar outras declarações como pano de fundo, apoio ou contraposição.

4 - De forma menos explícita, o texto pode se apoiar em crenças, questões, ideias e declarações amplamente difundidas e familiares aos leitores, quer sejam relacionadas a uma fonte específica, quer sejam percebidas como senso comum.

5 - Através do uso de certos tipos reconhecíveis de linguagem, de estilo e de gêneros, cada texto evoca mundos sociais particulares onde essa linguagem ou essas formas linguísticas são utilizadas, normalmente com o propósito de identificá-lo como parte daqueles mundos.

6 - Através apenas do uso da linguagem e de formas linguísticas, o texto recorre aos recursos linguísticos disponíveis, sem chamar a atenção de modo particular para o intertexto.

         Além dos seis níveis de intertextualidade propostos por Bazerman em seu texto, constam em seguida as técnicas de representação intertextual, pois assim como um texto pode ser referido a outro em distintos níveis e profundidades, considera-se também as características mais específicas dessas relações, como é visto na tabela a seguir.

TÉCNICAS DE REPRESENTAÇÃO INTERTEXTUAL (BAZERMAN, 2021)

1 - Citação direta: especificada por recurso tipográfico destacando das demais expressões.

2 - Citação indireta: especifica a fonte e, a partir disso, reproduz-se o sentido original, de acordo com as palavras que reflitam a compreensão do autor, a sua interpretação e/ou a sua perspectiva diante do texto inicial.

3 - Menção a uma pessoa, a um documento ou a declarações: o segundo autor tem oportunidade de deixar implícito o que quiser ou de se basear em crenças generalizadas sem necessidade de evidenciá-las.

4 - Comentário ou avaliação acerca de uma declaração, de um texto ou de outra voz evocada.

5 - Uso de estilos reconhecíveis, de terminologia associada a determinadas pessoas ou grupo de pessoas, ou de documentos específicos. 

6 - Uso de linguagem e de formas linguísticas que parecem ecoar certos modos de comunicação, discussões entre outras pessoas e tipos de documentos.


Essas técnicas especificam as possibilidades de se caracterizar e denominar as relações observadas entre distintas fontes, influenciando na instrumentalização da análise textual. E como corpus de análise foram escolhidas duas cenas cinematográficas, que serão detalhadas adiante.

1ª imagem: “Elsa & Fred” | 2ª imagem: “A doce vida


O longa-metragem “Elsa e Fred – Um Amor de Paixão”, do diretor e roteirista Marcos Carnevale, é resultado de uma colaboração entre Argentina e Espanha. Apesar de a história se passar principalmente em Madrid, na Espanha, a cidade de Roma, na Itália, é um cenário igualmente importante para o desenvolvimento da narrativa. Em 2005, a obra de Carnevale foi lançada mundialmente sob a classificação de “comédia romântica”, apesar de alguns críticos defenderem que o filme se trata, na verdade, de um drama. 

A narrativa é centrada em dois personagens que já atingiram a idade avançada, Elsa (China Zorrilla) e Fred (Manuel Alexandre), ambos possuem mais de 70 anos. Os protagonistas encaram a velhice de formas bastante distintas. 

Como Güércio (2013) atestou em sua análise, o interlocutor é introduzidos à história por meio de imagens da Fontana di Trevi (que habitou o imaginário do cinema na memorável cena do filme “A Doce Vida” de Federico Fellini), reforçando a consideração aqui defendida.

Em seguida, é revelada a imagem estática de Sylvia (Anita Ekberg), a protagonista de “A Doce Vida” (1960), em um quadro pendurado na parede de Elsa, concluindo a referência que a sequência inicial faz à conhecida obra de Federico Fellini. 

Güércio (2013) defende o entendimento da metalinguagem presente em “Elsa e Fred – Um Amor de Paixão”, visto que faz alusão a outra produção cinematográfica. A condução e o encerramento da história estão intimamente ligados à aclamada obra de Fellini. 

Um dos clássicos da filmografia de Federico Fellini, “A Doce Vida” é uma obra atemporal, a qual aborda o mundo das celebridades em que vive Marcello Rubini (Marcello Mastroianni), que acaba encontrando a belíssima Sylvia (Anita Ekberg) tomando banho e na famosa cena da fontana.

Abaixo, constam os quadros, conforme Bazerman (2021), com as descrições desenvolvidas a partir da análise da cena da fontana.



3ª imagem: “A doce vida” | 4ª imagem: “Elsa & Fred”


5ª imagem: “A doce vida” | 6ª imagem: “Elsa & Fred”



7ª imagem: “A doce vida” | 8ª imagem: “Elsa & Fred”

  

9ª imagem: “A doce vida” | 10ª imagem: “Elsa & Fred”

 

11ª imagem: “A doce vida” | 12ª imagem: “Elsa & Fred”

Essas breves exemplificações, tomando como base as cenas dos dois filmes referidos anteriormente, refletem as possibilidades de se analisar instrumentalmente as relações intertextuais presentes nas diversas semioses, de acordo com os níveis e as técnicas em Bazerman (2021) pressupostos, não com o objetivo de esgotar as construções de sentido relacionadas e referenciadas, mas como evidência de exposição das referências presentes nas evocações a partir de diferentes textos.


REFERÊNCIAS

BAZERMAN, C.; HOFFNAGEL, J. (Org.) ; DIONISIO, A. P. (Org.) . Gênero, Agência e Escrita. 2. ed. Recife: Pipa Comunicação, Campina Grande: EDUFCG, 2021. 230 p.

Elsa & Fred – Um Amor de Paixão. AdoroCinema. Brasil. 2005.

GÜÉRCIO, Nayara Helou Chubaci. Os imaginários da velhice feminina no cinema contemporâneo. Monografia (Bacharelado em Comunicação Social) – Universidade de Brasília, Brasília, 2013.

LA Dolce Vita. Federico Fellini. Itália/ França: Pathé Consortium Cinéma, 1960. 


quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Intertextualidade e Interdiscursividade


A intertextualidade é um tema amplo, o qual teve sua origem na Teoria Literária, em 1960, a partir da escritora, crítica literária, psicanalista e feminista búlgaro-francesa Julia Kristeva. Importa acrescentar que esse tema surgiu baseado no postulado do dialogismo bakhtiniano, tendo Bakhtin como uma influência ao se considerar a impossibilidade de avaliação e de compreensão de um enunciado/texto isoladamente, visto que este sempre dialoga com outros textos. 

O seu desdobramento conta com alguns conceitos-chave em seu desenvolvimento, como em meados dos anos 60, quando o entendimento sobre texto era reduzido ao de uma entidade abstrata – signo linguístico primário (HARTMANN, 1968 apud KOCH, BENTES e CAVALCANTE, 2008), período de ênfase nas relações sintático-semânticas, coesão textual. Posteriormente, em um segundo momento, em 70, com influência das teorias enunciativas – como a Teoria da Atividade Verbal, a Teoria dos Atos de Fala e a  Teoria da Enunciação – e a virada pragmática, vários outros fatores passaram a ser considerados também – tais como: intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade, intertextualidade, descritos em Marcuschi (2008) como critérios de textualização atribuídos primeiramente a Beaugrande e Dressler (1981), culminando no objeto de estudo texto em funções (SCHMIDT, 1978 apud KOCH, BENTES e CAVALCANTE 2008). Já em 80, a Linguística Textual contou com os processos de ordem cognitiva, responsáveis pela construção de sentidos, ampliando o conceito de texto, o objeto da Linguística Textual. Em 90, ocorreu a reviravolta sobre a qual resultaria paradigmas presentes em pesquisas desenvolvidas até este momento. Neste caso, são considerados o sociocognitivismo e o interacionismo bakhtiniano, convergindo ações linguísticas, cognitivas e sociais.

Vale ressaltar que esse tema é pesquisado sob a ótica de distintas teorias, a exemplo: Análise do Discurso, Linguística Antropológica e Teoria Literária.

Carvalho (2018, p. 18-19), em sua tese, faz as seguintes considerações sobre intertextualidade: 

esse fenômeno como um recurso textual-discursivo por meio do qual se constrói, reproduz ou transforma o sentido. Admitimos a relação intertextual: i) quando há diálogo entre textos específicos, dado pela inserção de partes de um texto em outro, ou pelas modificações operadas em um texto de modo que se transformou em outro, ou, ainda, quando um texto cumpre a função de comentar outro, casos a que chamamos intertextualidade estrita; /ou ii) quando não há a retomada de um texto específico, mas se verifica a imitação entre gêneros do discurso ou entre estilos de autores ou quando um texto alude a conteúdos explicitados em textos diversos, situações a que chamamos intertextualidade ampla. 


A intertextualidade, na proposta de Genette, revela um caráter restritivo, definida como “uma relação de copresença entre dois ou vários textos, isto é, [...] como presença efetiva de um texto em outro” (GENETTE, 2010, p. 12). E, como tipos de intertextualidade, são elencados a citação, a alusão e o plágio, os quais serão retomados em seguida.

Em Piègay-Gros (2010), há uma adaptação do quadro teórico-classificatório de Genette (2010), sendo o deslocamento categórico da transtextualidade para a intertextualidade a principal questão, conferindo que a concepção restritiva de Genette sobre a intertextualidade foi ampliada. 

Figura 1 – Relações intertextuais conforme Piègay-Gros (2010)

Fonte: Cavalcante (2012)

Quanto aos tipos de intertextualidade, constam neste texto os exemplos encontrados em Piègay-Gros (2010), elencados a seguir.

A iniciar pelas relações de copresença - as quais definem-se pela inserção efetiva de parte de um texto em outro -, distingue-se a citação: “[...] inserção de um texto no outro.” (PIÈGAY-GROS, 2010, p. 220) marcada por explicitude e marcas tipográficas. 

Piègay-Gros (2010, p. 221) menciona ainda que:

Simples e evidente, a citação se impõe no texto, sem exigir do leitor uma perspicácia ou uma erudição particular. Seu reconhecimento se subentende, mas a maior atenção deve ser dirigida à sua identificação e à sua interpretação: a escolha do texto citado, os limites de seus recortes, as modalidades de sua montagem, o sentido que lhe confere sua inserção dentro de um contexto inédito... são também elementos essenciais na sua significação.

Em seguida, há a referência, uma forma explícita de intertextualidade semelhantemente à citação, entretanto, nesta, não há menção direta ao texto ao qual se remete.

Figura 2 – Caronte

              Fonte: Não Entre Aki (2015) apud Carvalho (2018) 

Na imagem acima, a partir da construção de sentido do leitor e das relações intertextuais, infere-se uma referência a Caronte, o barqueiro do Hades, da Mitologia Grega, o qual tem a tarefa de conduzir almas de recém-falecidos sobre as águas dos rios Estige a Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos. 

Adiante, considera-se também o Plágio, forma a qual Piègay-Gros (2010) se refere como que está para a intertextualidade implícita como a citação está para a intertextualidade explícita, definindo-se de maneira resumida, mas forma precisa, como uma citação não marcada. “Plagiar uma obra é, então, citar uma passagem dela, sem informar que não somos o seu autor.” (PIÈGAY-GROS, 2010, p. 224).

Já a alusão, por sua vez, é muitas vezes comparada à citação, mas por motivos completamente diferentes, já que ela não é nem literal e nem explícita, pode parecer mais discreta e mais sutil, conforme Piègay-Gros (2010), muitas vezes assumindo uma simples forma de uma retomada mais ou menos literal e implícita.

Como exemplo:

Figura 3 – Giacometti Cria Campanha Para Marisa


Fonte: Giacometti (disponível em: https://www.eagora.com.br/noticias_ler.php?nws-news=80878&nwscanal=4922#.Y0ejfnbMK01) apud Carvalho (2018) 


Observa-se que a imagem e o texto escrito evocam a narrativa bíblica do livro de Gênesis, o momento em que Adão e Eva cederam à tentação de provar do fruto do conhecimento do bem e do mal, um exemplo de como esse tipo de relação entre textos ocorre.

E quanto às relações de derivação, considera-se que a paródia e o pastiche são os dois grandes tipos de relação de derivação que relacionam um texto ao outro: o primeira se apoia numa transformação, e o segunda, numa imitação de elementos estruturais do texto, conforme Piègay-Gros (2010). 

A paródia, segundo  Piègay-Gros (2010), consiste na transformação de um texto cujo conteúdo é modificado, mesmo conservando o estilo. Diante dessa definição, consta o seguinte exemplo:

Figura 4 – Oração dos concurseiros

        Fonte: Cavalcante (2012).

Vê-se na figura 4 alterações no desenvolvimento da Oração do Pai Nosso, alterando assim a obra original e caracterizando uma forma intertextualidade.

O pastiche, por sua vez, introduzido na França durante o século XVIII, com referência às imitações dos pintores da época, consiste na imitação de um estilo. Isso de forma não direta, ou seja, não literal. Como exemplo desse caso, Piègay-Gros (2010) cita o seguinte caso em seu texto: Da mesma forma, o emprego da conjunção coordenativa “e”, tão próprio de Flaubert, é sistematizado por Proust: 

Para encerrar, [o Presidente] confere os retratos dos presidentes Grévy e Carnot, colocados acima do tribunal; e cada um, levantando a cabeça, constata que o bolor os havia atingido.(...) Todos, até o mais pobre, teriam sabido – era certo – obtido milhões. Mesmo se eles os viam diante deles, na violência do pesar, em que se acredita possuir aquilo pelo qual se chora. E muitos se entregaram, mais uma vez, à doçura dos sonhos que tinham concebido, quando tinham entrevisto a fortuna, com a notícia da descoberta, antes de haver despistado o bandido.  

Observando que, cinco vezes, num texto curto, ele emprega a conjunção no início de uma proposição. O autor o repete à exaustão; o efeito de concentração assim obtido confere ao texto sua dimensão lúdica. O pastiche constitui, assim, o pêndulo da análise crítica: em “À propos du ‘style’ de Flaubert”, Proust assinalava, com efeito, que “a conjunção ‘e’ não tem de modo algum em Flaubert o objetivo que lhe atribui a gramática. Ela marca uma pausa numa medida rítmica e divide um quadro”. Ele acrescenta que “Flaubert a emprega onde ninguém teria a ideia de fazê-lo".

Por fim, aponta-se neste texto considerações sobre a interdiscursividade, em paralelo com a intertextualidade. Fiorin (2003) escreveu que ambos os fenômenos se referem à presença de duas vozes num mesmo segmento discursivo e textual: a intertextualidade “um processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo”, e a interdiscursividade “o processo em que se incorporam percursos temáticos ou figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outros.” 

Dessa forma, interdiscursividade não infere necessariamente a intertextualidade, “embora o contrário seja verdadeiro, pois, ao se referir a um texto, o enunciador se refere, também, ao discurso que ele manifesta”, Fiorin (2003, p. 35).


REFERÊNCIAS


CARVALHO, Ana Paula Lima de. Sobre intertextualidades estritas e amplas.135 f. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Linguística, Fortaleza, 2018.


CAVALCANTE, M. M. Intertextualidade e psicanálise. Calidoscópio. v. 10, n. 3, 2012, p. 310-320. 


FIORIN, J. L. Polifonia textual e discursiva. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN, J. L. (orgs.). Dialogismo, Polifonia e Intertextualidade. São Paulo: EDUSP.


GENETTE, G. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo Horizonte: Viva Voz, 2010.


KOCH, I. G. V.; BENTES, A. C.; CAVALCANTE, M. C. Intertextualidade: diálogos possíveis. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008.


MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola editorial, 2008.


PIÈGAY-GROS, N. Tipologia da intertextualidade. Intersecções – Revista sobre práticas discursivas e textuais, ano 3, n 1, São Paulo, 2010, p. 220-244.




quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Análise de Atividade Didática Sob a ótica do Letramento Visual


Nesta análise, trataremos o tema 4, “Narrativas Multimidiáticas”, do livro didático "Identidade em ação: linguagens e suas tecnologias - Manual do professor" (2020) de Thelma de Carvalho (et al.), um material de divulgação em uma versão submetida à avaliação para uso no Ensino Médio.

Esse tema, conforme a obra, tem como objetivo municiar os estudantes com critérios estéticos e contextuais para apreciar um tipo de narrativa comum na atualidade - a narrativa multimidiática. Para tal, é proposta, com esse tema, uma análise de uma história em quadrinhos que traz, como parte de sua composição, um gif, ou seja, trata-se de uma criação que mistura a mídia do impresso e estático com a das imagens dinâmicas, sob o objetivo dos estudantes explorarem, de forma autônoma, reportagens multimidiáticas para analisar como usam os recursos das diferentes linguagens e mídias.

Das habilidades pretendidas, destacamos duas: (EM13LGG105) Analisar e experimentar diversos processos de remidiação de produções multissemióticas, multimídia e transmídia, desenvolvendo diferentes modos de participação e intervenção social; (EM13LP54) Criar obras autorais, em diferentes gêneros e mídias – mediante seleção e apropriação de recursos textuais e expressivos do repertório artístico –, e/ou produções derivadas (paródias, estilizações, fanfics, fanclipes etc.), como forma de dialogar crítica e/ou subjetivamente com o texto literário.

Para prosseguirmos com esta análise, será considerado o conceito de Letramento Visual, termo introduzido em 1968 por John Debes para atender à lacuna existente no olhar crítico sobre outros sistemas de comunicação que extrapolassem o verbal, de acordo com o descrito por Gomes (2021). Isso é motivado pelo entendimento de que a linguagem e a comunicação visual podem ser usadas para realizar igualmente o sistema fundamental de significado que constitui nossas culturas e que cada um o faz por meio de suas próprias formas particulares, de forma diferente e independente (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006. p. 18-19 APUD GOMES, 2021).

Em uma definição mais ampla, o Letramento Visual pode ser entendido como “um grupo de competências que permite que os seres humanos possam discriminar e interpretar ações, objetos e/ou símbolos visuais, naturais ou construídos, que eles encontram no meio ambiente” (STOKES, 2002, p.12 APUD BARBOSA, 2014).

A seguir, constam as imagens da atividade analisada.



 
Fontelivro didático "Identidade em ação: linguagens e suas tecnologias - Manual do professor" (2020) de Thelma de Carvalho (et al.).


Com foco na análise da relação texto e imagem dessa atividade, observaremos a possível correlação ou a sua falta entre a multimodalidade nos textos apresentados e a exploração desta para fins didáticos por meio dos enunciados e dos conteúdos das questões propostas, para indicar a promoção do letramento visual dos possíveis leitores.

A atividade selecionada conta com duas imagens, em dois gêneros distintos, a primeira com textos verbal e visual, e a segunda somente com texto visual.

Quanto às relações que podem ser estabelecidas entre texto e imagem nessa atividade, nos valemos de Barthes (1977) apud Barbosa (2017), quem, numa perspectiva da semiótica estruturalista, apresentou três possibilidades de interação: ancoragem – quando o texto apoia a imagem; ilustração – quando a imagem apoia o texto; e, relay – quando há uma relação de complementaridade entre texto e imagem com ambos acrescentando informações distintas. 

Diante da perspectiva apresentada por Barthes, entendemos que se trata de relay, pois o material visual e o verbal são complementares, completando uma nova possibilidade de leitura ao se somarem cada imagem e palavra em uma maneira distinta de relação entre os textos.

As questões, por sua vez, proporcionam as possíveis construções de sentido/ respostas  a partir das imagens, não havendo uma superficialidade no tratamento das indagações, concordando com o que Kress e Van Leeuwen (2006, p. 42-43) apud Brito e Pimenta (2009, p. 108), em acordo com o conceito de Halliday, escreveram sobre um sistema semiótico: tem que ser capaz de formar textos, ou seja, complexos de signos os quais sejam coerentes tanto internamente, quanto com o contexto para o qual eles foram produzidos, arranjos composicionais que permitem a concretização de diferentes significados textuais. 

Sobre as estratégias de leitura que podem estar associadas para a obtenção das respostas e que podem ser associadas à análise das imagens, consideramos a seleção e inferência, pois assim como o leitor deverá completar algumas questões com a sua própria construção de sentido, construindo a sua resposta, há questão que deve ser concluída pela relação entre o que se obtém no próprio cotexto. A verificação, por sua vez, inicia logo após a inferência e a seleção, quando o leitor já adentra ao texto e busca pela comprovação de que os objetivos da leitura, delineados anteriormente, serão atendidos ao se completar com todo o material disponível visual e verbalmente e o próprio conhecimento prévio.

De forma breve, consideramos que a atividade discutida nesta análise propõe uma iniciação interessante relacionada à multimodalidade e à intertextualidade, verbal e visual, entretanto o aspecto crítico não é trabalhado/aprofundado, mesmo considerando o público-alvo, alunos do Ensino Médio, uma etapa em que se vislumbra a maturidade das capacidades intelectuais e críticas para ingresso à academia e/ou mundo do trabalho.


REFERÊNCIAS


BARBOSA, Vânia Soares; ARAÚJO, Antonia Dilamar. Multimodalidade e letramento visual: um estudo piloto de atividades de leitura disponíveis em sítio eletrônico. Revista da Anpoll nº 37, p. 17-36, Florianópolis, Jul./Dez. 2014.


BRITO, R. C. L; PIMENTA, S. A Gramática do Design Visual. In: PIMENTA, S.; LIMA, CHP; AZEVEDO, A. M. T. Incursões semióticas: teoria e prática de gramática sistêmico-funcional, multimodalidade, semiótica social e análise crítica do discurso. Rio de Janeiro: Livre Expressão Editora, 2009.


GOMES, Francisco Wellington Borges. Letramento visual e a perspectiva linguística brasileira: conflitos, (re)conciliações e suas implicações para o ensino de leitura. In: GOMES, Francisco Wellington Borges (Org.) Apontamento sobre a leitura de textos visuais e multimodais em ambientes digitais. Teresina: EDUFPI, 2021.


GUIMARÃES, Thelma de Carvalho (et al.). Identidade em ação: linguagens e suas tecnologias - Manual do professor. 1ª ed. São Paulo: Moderna, 2020.

Análise Visual conforme as Categorias da Gramática do Design Visual



A imagem analisada e em questão neste texto foi postada pelo cartunista Gilmar (@CartDasCavernas) em sua conta na rede social Twitter (https://twitter.com/CartDasCavernas), às 1h05 de 5 de outubro de 2022, com o título: “CANIBAL CONFESSO”. O cartunista é pioneiro no país em registrar críticas, por meio de charges políticas e sociais, ao atual governo.

Essa postagem aconteceu há exatamente 3 meses após a decisão de senadores e deputados federais em sessão conjunta do Congresso Nacional derrubarem o Veto 28/2022, conforme a Agência Senado (2022). Visto que, no início de junho deste ano, o presidente da República, Jair Bolsonaro, vetou totalmente o projeto de lei que estabelece a alteração do nome da data comemorada antes “Dia do Índio” para, então, “Dia dos Povos Indígenas” (PL 5.466/2019). Mais uma questão agravante que soma a: demarcação paralisada, expansão do agronegócio, cultura e integração e órgãos indigenistas.


Disponível em: https://pbs.twimg.com/media/FeUV7gSXgAEngt3?format=jpg name=medium Acesso em: 5 de outubro de 2022.

A partir da contextualização sobre a imagem abordada nesta análise, o trabalho segue para as observações teóricas, com base em Kress e van Leeuwen (1996) relativo à Gramática do Design Visual (GDV).

Ao observar o processo de interação entre os participantes, em que é possível identificar vetores – como as mãos do índio e os olhos direcionados da caricatura do presidente –, ator – uma vez que a caricatura de Jair Bolsonaro dirige-se em sua ação em sentido ao índio   sem expressão de resistência ou reação – e meta – o índio – indivíduo sem expressões ou reações diante de uma personagem com detalhes ativos em sua descrição, considera-se uma representação narrativa, classificada como de ação – por proporcionar uma leitura de acontecimentos/ações entre duas personagens.

Ainda sobre a representação narrativa de ação, há um detalhamento: transacional, pois ela conta com a presença de dois participantes, um ator e um meta com indicação de vetores, uma vez que há olhar direcionado do presidente ao índio, abertura da boca em direção a este – evidenciando uma ação – e os braços do índio em direção ao seu opositor na imagem.

Além da Metafunção ideacional/representacional, envolvendo os participantes do texto,  consta também a Metafunção Interpessoal/Interativa, com relação entre leitor e texto. Partindo dessa observação, a leitura pode identificar um olhar de oferta (quando não há interesse/ olhar para um “leitor”) evidenciando um tom persuasivo e não incisivo por parte de personagem em direção ao leitor, uma vez que um olha para cima e o outro mantém os olhos fechados, em um enquadramento com plano fechado nas faces das personagens, o que caracteriza subjetividade na representação.

Somando às considerações relacionadas à Metafunção Interpessoal/Interativa, na imagem analisada verifica-se uma perspectiva oblíqua/subjetiva das caricaturas, a qual não revela tudo, mostrando apenas um ângulo específico do que é caracterizado na imagem - as faces das personagens em interação e suas expressões faciais, o que gera menor empatia com o leitor e maior distanciamento e subjetividade também. Ademais, há uma perspectiva em ângulo baixo: participantes em paralelo em sua colocação na imagem em relação ao olhar do leitor, concedendo um certo poder a este.

Por fim, quanto à aproximação ou ao distanciamento do real e à quantidade e à qualidade de informações necessárias para o leitor – modalidade – a imagem conta com baixa modalidade naturalística, marcada saturação das cores distantes do real, tons como cinza e verde, incomuns na coloração de pele e cabelo, assim como as formas caricatas, com fisiologia destacada exageradamente, destoando do natural. Estes detalhes últimos apontam uma alta modalidade abstrata também e uma alta modalidade sensorial a partir das expressões em evidência, a ênfase na face/expressão grotesca do indivíduo inferior e o tom vermelho indicando o derramamento de sangue, assim como a posição do indivíduo com a cabeça invertida indicando sua submissão durante a situação.

É possível identificar e classificar vários detalhes presentes nessa imagem em análise, contanto, o objetivo da GDV e de quem a usa como fundamento não é prescrever e atender a todas as possíveis análises de um mesmo objeto, esgotando-as, e sim desenvolver o máximo possível de uma construção de sentido conforme o quadro teórico organizado por Kress e van Leeuwen (1996) para descrição dos códigos semióticos.


REFERÊNCIAS


CUNHA, Andreia Honório da. Gramática do design visual e tiras: multimodalidade e produção de sentidos. Ponta Grossa - PR: Atena, 2021.


GILMAR. CANIBAL CONFESSO. São Paulo, 5 de outubro de 2022. Twitter: @CartDasCavernas. Disponível em: https://twitter.com/CartDasCavernas/status/1577691383866998785?s=20&t=5NBV49I6NoCjATuXg20Ezw. Acesso em: 5 de outubro de 2022.


GOMES, Francisco Wellington Borges. A Gramática do Design Visual. 30 de set. de 2022. 194 slides. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1S_JXqV8yfCKdduEk_VwrHUXqxbtjNt1k/view?usp=drive_web&authuser=0


KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. London, New York: Routledge, [1996], 2006.


SENADO NOTÍCIAS. Bolsonaro veta projeto que criava Dia dos Povos Indígenas

Disponível em: Agência Senado. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/06/02/bolsonaro-veta-projeto-que-criava-dia-dos-povos-indigenas. Acesso em: 5 de outubro de 2022.


 

A multimodalidade, a intertextualidade e a persuasão na publicidade

Este texto propõe-se a abordar de forma analítica uma campanha audiovisual de cunho publicitário, com foco na conceituação de multimodalidad...